quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Depoimento anônimo.





O outro caso aconteceu comigo. Foi mais o que chamam de molecagem. Sempre ia eu para o abrigo, de bicicleta. Um dia minha tranca escangalhou e comprei uma que abria por senha de cinco números. Não é que no primeiro dia que a tranquei, um menino a abriu em poucos segundos e começou a passear com a bicicleta? Perguntei como ele tinha feito e ele me disse que tinha descoberto a senha, e até me disse qual era. A princípio me enfureci, mas depois fiquei curioso em como ele tinha feito isso. Ele me ensinou que era muito fácil, mais fácil que abrir cadeados com lima. Bastava ser bom de ouvido. Como cada disco tem dez números, de zero a nove, basta girar cada disco até sentir o encaixe da senha na tranca. Você prossegue de um em um até abrir a tranca. É realmente muito fácil. Depois ele até me ensinou. Abro um parêntese para mostrar a utilidade benéfica desse tipo de conhecimento (Outro dia, minha namorada deu de presente ao seu pai uma nova maleta de médico, que justamente fechava com esse sistema de tranca. Quando olhei para a tranca, pensei: qualquer avisado pode abrir isto. Bem, o médico se empolgou de tal maneira com a nova maleta que colocou todas as suas coisas de médico na nova, escolheu uma senha e trancou a maleta. Quem disse que ele depois se lembrava da senha! Foi um sufoco para os familiares. E, principalmente, para o médico. Ninguém conseguiu abri-la. Tentaram as senhas que imaginavam, até que pedi a maleta quando desistissem. Nunca havia feito isso antes, mas me lembrava do método. E não é que eu abri a maleta, em poucos segundos? Diria com isso que há males que vêm para bem, e que os internos produzem conhecimento, apesar de não ser o que a sociedade deseja).
A vida no abrigo era muito conveniente. Como não havia instrumentos suficientes para resolver as questões familiares dos adolescentes e crianças, e como muitos dos pais achavam mesmo que era de responsabilidade do governo cuidar de seus filhos, já que eles não estavam interessados mais do que não podiam, era comum que os abrigados, desde a primeira vez que chegavam ao abrigo, saíssem de lá e retornassem inúmeras vezes. No abrigo eles têm o que em sua casa não têm. Lá no abrigo, se come à vontade, quatro vezes por dia. Lá, são eventuais as programações de lazer, tais como passeios e locação de filmes. Se um interno faz pressão para não ir à escola, ele pode chegar a tal ponto que nem os conselheiros tutelares, nem o próprio promotor podem convencê-lo do contrário, e ele fica sem ir à escola por um bom tempo, apesar de todos os apelos e orientações dos educadores. Assim, fica muito conveniente permanecer no abrigo. Sem contar certas adolescentes, abrigadas por um período, que faziam programa. Elas evadiam-se da instituição pelas oito horas da noite e retornavam só pelas sete da manhã, dormindo o dia todo e acordando às quatro da tarde, pedindo café-da-manhã. Havia uma superiora, na época, que permitia isso e nos dizia que isso fazia parte de uma política de redução de danos, e era melhor assim do que elas dormirem na rua, correndo riscos.
Também enfrentávamos a questão dos dependentes químicos. Eles tentavam parar por si sós, e alguns passavam até da fase de crise de abstinência para o delirium tremens. Já acompanhei não poucos adolescentes para postos de saúde, a fim d’eles tomarem glicose na veia, para aliviar a abstinência. Enquanto tomavam o soro, me contavam de suas vidas. Geralmente filhos de pais bandidos se tornam desde cedo bandidos, e filhos de pais traficantes se tornam desde cedo traficantes. Não que haja exatamente uma educação bandida, mas é que esses pais, cedo ou tarde, ou são detidos pela polícia ou são mortos por dívidas ou até mesmo pela polícia. A criança, assim, é criada pelos parentes ou colegas, também do mesmo ramo que os pais, e é por isso que a criança segue facilmente pelo mesmo caminho, pois não lhe dão outra opção. Aos oito, o primeiro cigarro, aos dez, o primeiro baseado, aos onze, a primeira arma, e por aí vai. Eles me contavam como é fácil conseguir uma arma. Simplesmente se vai a uma casa de traficante e pede-se uma arma! Você pagará por ela com serviços ao traficante, mas aí, você tem mais dívidas do que imagina, e já está preso a compromissos, cujo vacilo é pago com a morte. Os adolescentes mais frios e com mais passagens pela polícia contam que testemunharam o pai, alcoolizado ou drogado, matar a mãe, geralmente a facadas. E se perguntamos onde está o pai agora, contam que “mataram ele também” .

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