quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Pessoas de rua.




É na rua também que sua libido sexual se aflora mais cedo. Sem repressões, seus impulsos não seguem muitos critérios. A vida sexual deles pode começar com onze ou até dez anos de idade, isso quando se trata de relações heterossexuais. Como a lei que vigora nas ruas é a lei do mais forte ou o mais malvado, é comum meninos de até seis anos serem explorados pelos mais velhos.

O homossexualismo dos meninos heterossexuais é explicado na seguinte lógica: o ativo não é considerado homossexual, e sua masculinidade permanece, mas é o passivo que é considerado o homossexual, a mulher da relação. Isso também ocorre nos que assumem a sua homossexualidade, mesmo entre os que fazem programas.

Quanto às meninas, elas geralmente sentem atração por homens mais velhos, mas nada impede que elas tenham relações com seus amigos. Uma adolescente é bastante abusada quando está sob efeitos das drogas, pois todo o grupo de meninos ao seu redor poderá fazer literalmente uma fila para ter relações com ela. Não é preciso dizer que, desse jeito, mesmo com toda a informação, muitos acabam contraindo doenças sexualmente transmissíveis. Houve até um caso em que um adolescente contraiu AIDS de uma conhecida, enquanto não estava em situação de abrigo. Quando descobriu, dentro do Abrigo, entrou num estado longo de depressão e tentou se matar várias vezes dentro do abrigo, com talheres. Não obstante, escondeu das novas parceiras que era portador e continuou tendo relações com outras adolescentes.[9]

Passando para a questão da violência,[10], todos eles facilmente passam do estado de controle para o descontrole. Brigam muito entre si e ficam muito nervosos quando suas vontades são barradas pelos educadores. Não há acepção de adversários: os pequenos enfrentam os grandes, os meninos enfrentam as meninas e vice-versa, e até o educador não deixa de ser alvo de um repentino furor, quando surge uma situação.

A maioria deles sofreu violência física em casa, e, se não, na rua, e, se não, no abrigo. Lá vigora a lei do mais forte, do mais “bandidão”, é a esse que os demais irão respeitar. E temer. Vou contar certas situações eventuais de violência. Certa vez, eu não tinha como levar um abrigado de oito anos ao bosque, que insistia copiosamente. Foi explicado a ele que não seria possível, devido a estarmos apenas em número de dois educadores e o outro não poderia ficar sozinho com os demais abrigados. Ele se sentiu tão rejeitado que sua resposta foi vir para cima de mim com uma faca para carne na mão, que havia pegado na cozinha, a fim de convencer-me. Depois de muita conversa, ele deixou a faca. Só então minhas pernas começaram a tremer. Mas há casos em que não dá tempo de uma negociação.

Em outra Ocasião, durante o almoço, uma adolescente começou a brigar com um outro adolescente e ela achou que resolveria a situação arremessando os pratos na parede. Ele achou que seria conveniente devolver os elogios arremessando as cadeiras contra ela, e nessa troca de presentes, a retribuição de mana acabou só com a chegada da polícia. É, a polícia só pode ser acionada nesses casos extremos. A última vez que tive ciência da abordagem da polícia no abrigo foi há alguns meses, quando quatro meninos ameaçaram uma adolescente de morte. Eles tentaram “apavorar o setor” e passaram a noite na 9ª S.D.P.

Além da violência por retaliação, há a brincadeira violenta. De tempos em tempos alguém ressuscita uma brincadeira chamada Tereza. Consiste em enrolar um papel higiênico nos pés de alguém que está dormindo e atear fogo. A queima é instantânea. Esse ato é comum nas cadeias, como punição de um companheiro de cela que vacila em alguma situação. No abrigo, os internos que o praticaram o viam como motivo de brincadeira.

Os abrigados, em geral, oferecem muita resistência aos estudos e a freqüentar escolas. Não se sentem estimulados a se emanciparem e mudarem de vida, pois além de toda essa bagagem de sofrimento, estão passando pelo período turbulento da adolescência mesmo. A maioria não consegue terminar cursos profissionalizantes oferecidos pelo município, não consegue realmente ficar parada em um único lugar nem que seja por 40 minutos. São muito ansiosos e inquietos.

Mas apesar de tudo, adoram conversar. Eles têm muito a contar de suas aventuras e de seus sofrimentos. Não têm a menor vergonha de revelarem seus mais íntimos segredos e fraquezas, apesar de “durões”, pois, com a abordagem adequada, eles despejam confiança no educador e podem revelar qualquer coisa. Até mesmo os garotos e as garotas de programa, que amam mesmo contar suas aventuras noturnas, de como escaparam do cliente armado que queria assaltá-los, de como assaltaram o cliente desarmado; quem são os políticos, advogados e os donos de clínicas que compram drogas e saem com garotas e garotos de programa sem a família desconfiar... Enfim, é muito fácil conhecer esse mundo, e é mais fácil ainda entrar nesse mundo; ele é mesmo muito acessível, a qualquer camada da população, a qualquer hora do dia, em qualquer mocó (casa abandonada que passa a servir de morada para a população de rua). O difícil é sair dessa vida, porque isso traz uma renda suficiente para sobreviver, sem precisar passar metade da vida na escola.

Os abrigados não cansavam de contar como era fácil conseguir dinheiro de qualquer transeunte, sem precisar pedir dinheiro nos semáforos, o que é mais fácil só para os pequenos. Os maiores treinavam caras de doente e faminto, colocavam tipóias no braço, e tremulavam a voz, pedindo apenas cinqüenta centavos para ajudar a comprar uma passagem de volta para casa. Consegue-se tirar com isso de vinte a trinta reais por dia, sem esforço. Quando é que eles vão deixar de viver assim para passar o dia todo decorando nomes de rio e expressões matemáticas que nunca vão usar na vida? Com o dinheiro eles compram os lanches que desejam, compram seus entorpecentes. E uma vida de programas sexuais ainda é mais lucrativa. É possível comprar um tão sonhado celular em uma única noite de trabalho, e, sem contar que é preciso dinheiro para freqüentar as boates caras e beber. Mas o preço por essa exploração, além da humilhação e da violência psicológica, é muito alto: risco de doenças, risco de calotes seguidos de assalto, risco até de vida, sem contar na exploração financeira, pois todos os pontos da cidade pertencem a algum cafetão, geralmente um poderoso traficante ou um travesti experiente, ou os dois em um. Assim, todo profissional do sexo paga o seu pedágio, seu dízimo pelo uso do local.

Quanto aos furtos, a grande maioria dos abrigados, cedo ou tarde, o praticam, desde levarem para casa xampus e cremes da instituição, quando voltam para casa, até o roubo de estranhos, na rua, quando vão passear. Quando algum interno aparece com dinheiro, dado pela família, por exemplo, mesmo seus melhores amigos poderão roubá-lo, e, normalmente, o fazem. Eles têm a noção de que podem ser roubados pelos próprios amigos, e também sabem que seus amigos têm a noção de que podem ser roubados por ele. É uma condição “natural” para eles. Vence o mais ligeiro, na linguagem deles. Se eu descubro que meu amigo pegou meu dinheiro e vou reclamar com ele, ele se desculpa dizendo que foi mais ligeiro, e que, da próxima vez, eu deveria ser mais ligeiro também. No abrigo, os educadores tentam resolver isso convencendo os internos de que isso é errado. Mas é difícil mudar esse comportamento. Muitas educadoras e até a diretora já tiveram suas bolsas abertas e seu dinheiro roubado em alguma ocasião. Os abrigados que cometem esse tipo de furto são mesmo muito ligeiros, e sabem exatamente os poucos segundos que precisam para entrar no escritório, pegar o dinheiro e sair sem serem vistos. Mas há casos de tentativas de furto, legalmente falando, mas que foram, na verdade, brincadeiras dos internos. E no final, no diálogo, todos acabam se entendendo. Relatarei duas situações interessantes.

Certa vez, a Auxiliar Administrativa, que sempre vinha de carro, estacionou frente ao abrigo e entrou para trabalhar. Era hora de troca de plantão. Alguns abrigados estavam brincando de jogar lama em um outro, em comemoração a ter passado de ano no supletivo, e, aproveitando o portão aberto, por causa da entrada dos educadores do novo plantão, saíram para a calçada e acabaram enlameando o carro da administrativa. A diretora, que estava de saída também, mandou que os responsáveis pelo ato lavassem o carro dela. Bem, dizem que a ocasião faz o ladrão. Aconteceu que os dois adolescentes responsáveis já haviam pegado a chave do carro segundos antes, e aproveitaram o momento em que os educadores entraram no escritório para assinar o ponto e entraram no carro, deram a partida e saíram com o veículo pelas ruas da cidade. A administrativa ficou desesperada, um dos educadores tentou achá-los, com seu carro, mas em vão, e retornou.

Os dois adolescentes, que, na verdade, eram assaltantes na prática, entre outras coisas, ficaram rodando pelas ruas da cidade, participando de rachas, e disseram que só não foram para um bordel porque não tinham efetivamente dinheiro. Retornaram quase duas horas depois, felizes da vida, como se nada tivesse acontecido. Acho que as coisas foram ficando de tal jeito no abrigo, que tudo se naturalizava muito facilmente. Hoje em dia isso não é mais assim. As orientações, melhores estruturas e a experiência passaram a evitar tais comportamentos.

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